Julgamento ‘apaga’ vítima ao centralizar debate na condição indígena do réu

NOTAS PÚBLICAS

5/10/2023

Em um julgamento complexo, por envolver questões interculturais, o indígena Guarani Ailton Jacinto Camargo foi condenado, no dia 20 de abril, pelo feminicídio de Marli Piraí, indígena Kaingang, sua companheira à época, assassinada a pedradas. Ailton recebeu a pena de 19 anos e 3 meses de detenção pelo crime, cometido dentro da reserva do Apucaraninha, em Tamarana, em abril de 2019. A condição indígena do réu gerou debates intensos e controversos entre defesa e Ministério Público.

Como temos observado em outros julgamentos, o direito da vítima, as condições concretas da relação com o réu e outras circunstâncias relevantes para esclarecer o fato criminoso foram deslocados para dar lugar a questões correlatas, que adquiriram centralidade no debate entre MP e defesa. Neste caso, os argumentos giraram em torno da condição indígena do réu de responder somente à justiça indígena ou ao direito penal, fazendo referência a artigos constitucionais, normas penais e à Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989.

Embora Néias avalie positivamente a condenação pelo júri, que reconheceu, por maioria, a autoria do crime cometido no contexto de violência doméstica e as qualificadoras por meio cruel e motivo torpe, observa com perplexidade parte das argumentações do MP e do Promotor Federal que representou a Funai (Fundação Nacional do Índio) durante o julgamento.

Por um lado, o MP reproduziu estereótipos sobre a condição indígena, referindo-se ao réu como “índio integrado” em função de falar português, usar celular, ter cursado até o segundo grau e trabalhar com carteira assinada, características que o distanciariam de um “verdadeiro” indígena ou um indígena “puro”, podendo ser submetido às leis nacionais, conforme a Convenção da OIT.

Por outro lado, observamos no Promotor Federal o reconhecimento da condição indígena a partir da autodeclaração, porém a banalização do crime cometido pelo réu em função do “desequilíbrio psíquico”, que seria normal de acontecer, e do desconhecimento das leis de proteção às mulheres, como Maria da Penha e a qualificadora do feminicídio.

Observamos, portanto, argumentos que se debruçam sobre características individuais e culturais do réu, porém na ausência da vítima e da relação conjugal com dinâmica de controle, ciúme e violência gerada pelo sentimento de posse do companheiro sobre Marli. Esta dinâmica relacional não se distancia das características dos feminicídios cometidos contra mulheres não-indígenas.

Embora a defesa tenha tentado enfatizar que o crime se deu em função do ciúme que o réu nutria da companheira, desconsiderando os papéis impostos de gênero, Néias refuta essa argumentação e dialoga com movimentos de mulheres indígenas que buscam tensionar essas dinâmicas culturais em busca de igualdade de direitos e preservação de suas vidas como um direito humano universal.